Segunda, 01 Fevereiro 2010

Neide Castanha: Criança não tem dono. Criança é patrimônio do País

Enfrentar a exploração sexual de crianças e adolescentes é um grande desafio. Ela atinge jovens de todas as idades, vítimas da desigualdade social que cerca o País. Geralmente, são meninas e meninos oriundos de famílias de baixa renda que se sujeitam à exploração, por não ter outro meio de sobrevivência. Aliás, é muito mais que isso. Para Neide Castanha, que desde 2004 está à frente do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (Cecria), a exploração está, muitas vezes, aliada à necessidade de consumo. E, para ela, modificar essa realidade depende não apenas de esforços do Estado, mas também da participação da sociedade, que deve denunciar, cada vez mais, os abusos, e do apoio de entidades privadas para combater, por exemplo, a pornografia pela internet.

O problema da exploração sexual de crianças e adolescentes tem aumentado nos últimos anos?
Sem dúvida. A exploração não apenas tem aumentado como tem se agravado. São duas coisas diferentes. Poderíamos estar aumentando nos moldes tradicionais conhecidos da chamada famigerada prostituição infantil. Hoje, além de ter aumentado, temos novas formas e novos cenários dessa exploração que vem sofisticando cada vez mais o modo dessa violência contra crianças, acompanhado por diferentes formas de desenvolvimento e pelo avanço incansável do mercado sobre os pobres.

Que novas formas são essas?

As novas tecnologias da informação e da internet, por exemplo. Antes, as meninas exploradas sexualmente estavam nos tradicionais bordéis, sendo vítimas de clientes em uma relação cliente e pessoa. Hoje, os programas sexuais são oferecidos nos books de internet e o tráfico de crianças e adolescentes para fins sexuais é organizado pela máfia e pelo crime organizado, além do meio eletrônico, que é protegido por sigilo e uma série de coisas.

Ainda há bordéis espalhados pelos estados?

Os antigos bordéis foram substituídos por grandes casas de diversões e entretenimento em zonas com poder aquisitivo cada vez maior para esse consumo do sexo ilegal, clandestino e violento. Por outro lado, como não conseguimos enfrentar as grandes questões brasileiras como a fome e a desigualdade, acrescidas hoje por uma necessidade desenfreada deste consumo, onde até a educação vira consumo, e a venda de sexo para pagar mensalidade de faculdade.

Isso significa que o cenário da exploração tem mudado?

Correto. Hoje não temos mais a exploração cuja vulnerabilidade é a pobreza e a sobrevivência. Temos a exploração, cuja necessidade é gerada pelas necessidades de consumo, para comprar um celular ou um carro popular. Isso nos coloca desafios até então inatingíveis.

Do dia 25 a 28 de novembro o Rio de Janeiro realizará o III Congresso Mundial de Enfrentamento da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. O que isso representa?

O terceiro congresso mundial é um avanço muito importante. Reunirá mais de três mil pessoas dos cinco continentes, além de 300 adolescentes. E podermos dizer que temos esse problema e assumimos como uma questão social que não queremos, mas temos capacidade para enfrentar. A realidade do Brasil não difere de outros países do mundo. Agrava-se por não termos absorvido os acessos da contemporaneidade a favor das pessoas, criando novas vulnerabilidades, mas é possível mudar esse quadro se nos unirmos no enfrentamento da exploração.

O que difere o Brasil dos demais países em relação a exploração sexual infantil?

O País passa por um bom momento do seu desenvolvimento e da sua condição econômica e passa a ser atrativo de migrações internas e externas. A migração e o tráfego de pessoas são o destino de países mais pobres, o que deixa a situação mais complexa no que diz respeito à impunidade, corrupção e à tolerância da sociedade. Tudo isso vai dando campo para melhor ajustamento do crime organizado, por onde passa a exploração sexual da criança e do adolescente. O quadro do Brasil é muito parecido com a realidade mundial, acrescido por um modelo neoliberal que traz uma globalização da perversidade e não da felicidade. Paradoxalmente, o País vem avançando muito no seu processo de organização da sociedade civil e no enfrentamento dessa situação e isso nos habilita a chamar o mundo para um diálogo.

É preciso que haja uma mudança de postura da sociedade de modo geral no combate à exploração?

Sim, mas muito mais que isso. Temos uma cultura de "coisificar" as crianças, de não tê-las como sujeito e termos uma relação "adultocêntrica" sobre ela. São elementos de uma cultura arcaica que, se não for superada, gera condições do abuso sexual intrafamiliar que representa a maioria dos casos. A relação familiar hoje ainda é formada por um machismo, por uma condição inferior de gênero a que se coloca a mulher, e quando essa mulher é menina ela é mais "coisificada".
Como assim?

A situação é pior se ela tiver identidade afrodescendente, indígena, regional, muitas vezes rejeitadas pela sociedade. Por exemplo, ninguém pensa em pegar uma menina de São Paulo para ser empregada doméstica, mas logo pensam: "Vou ali no Nordeste caçar uma menina para vir ajudar meu filhinho em casa!". Então a "casa grande e senzala", de 500 anos atrás continua e a gente não conseguiu superar. A gente vê essas repetições e acha natural. A sociedade tem responsabilidade de alterar o seu padrão, substituindo essa condição "coisificada" por um parâmetro de direitos humanos, o direito de dignidade de todos, o desenvolvimento da sexualidade de todas as pessoas conforme a sua idade.

Essa cultura machista e a utilização da internet em desfavor aos direitos de crianças e adolescentes é um sinal de que é preciso criar novas políticas públicas?

Nós temos que ter, sim, novas perspectivas de políticas públicas que envolvam o terceiro setor. O setor privado tem que ter responsabilidade social. Enquanto não trouxermos para esse campo os empresários provedores de internet, nós não vamos ter políticas públicas que enfrentem o problema, por exemplo. Então, tem que ser criadas novas nuances para desenhar uma política de enfrentamento.

E quais são?

No campo da exploração sexual no turismo é preciso termos aliados nesse setor como responsáveis por um desenho de uma política. Acredito que sozinhos, o governo e a sociedade não consigam fechar todas as janelas que possibilitam a propagação deste tipo de crime. Por outro lado, precisamos também trabalhar o setor de transportes. A Polícia Rodoviária Federal hoje é uma polícia compreendedora desse problema, mas precisamos trazer para o debate todos os setores de transporte. Temos que conversar com os motoristas sobre a exploração sexual. Não dá para ver uma criança na boléia de um caminhão e achar que tem que fiscalizar só a carga que está lá atrás. Há novos olhares e novos cenários para desenhar uma política pública.

A denúncia continua sendo a principal aliada no combate à exploração sexual infantil?

Com certeza! Sem saber a gente não tem o que fazer. A denúncia é uma ferramenta importantíssima para dizer que somos de outro modo. E a denúncia não é no sentido de ficar acusando a mãe que não denunciou. Precisamos ter consciência do problema e empoderar a mãe da vítima para que ela denuncie os abusos e não se sinta constrangida por isso. É tomar o problema da violência sexual para si e encarar a situação como um problema de todos. A violência é uma questão pública, do coletivo e não é uma questão do mundo privado. Quando alguém coloca uma arma no ouvido de alguém não é uma questão pública? Qualquer um não grita: "Pega ladrão?!" Então por que não gritar pega abusador? Criança não tem dono, criança é patrimônio de uma nação.

E o orçamento hoje é suficiente para atender todas as políticas de enfrentamento?

É evidente que o orçamento não é suficiente. Entretanto, temos outras deficiências que precisam ser sanadas. Ainda nem sabemos o que seria suficiente para enfrentar a exploração sexual de crianças e adolescentes. Primeiramente, temos que nos organizar e aprender a planejar para depois dizer se o que necessitamos é isso ou aquilo.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) significa um marco nessa luta pelos direitos da infância?

O estatuto é a grande vedete e foi ele que nos possibilitou tudo isso. Antes do estatuto ninguém nem podia falar de violência contra crianças. Temos problemas, falta muito, mas o ECA, sem dúvida é a nossa maior ferramenta.


Jornal de Brasília - 03.11.2008