Sábado, 02 Janeiro 2010

Entrevista com a Neide Castanha

Maria é uma menina pobre do interior do nordeste brasileiro. Aos 12 anos, é vendida pela família a um recrutador de prostitutas. Em seguida, é arrematada em um leilão de virgens e levada para um prostíbulo da Floresta Amazônica. Tratada como um objeto de compra e venda, a menina sofre diversos abusos em sua infância.

A história acima é ficcional, narrada no filme Anjos do Sol, do diretor Rudi Lagemann, mas a vida de Maria está longe de ser fantasiosa ou fruto da imaginação sem limites de roteiristas de cinema.

Assim como Maria, milhares de crianças e adolescentes sofrem abusos sexuais, seja de desconhecidos ou dos próprios familiares. “O desafio é implementar o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes com uma política pública universal que seja eficaz e eficiente para cessar a violência”, afirma Neide Castanha, secretária-executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes e secretária-geral do Centro de Referência, Estudo e Ações sobre Crianças e Adolescentes (CECRIA).

Em entrevista por e-mail ao Portal Pró-Menino, Castanha fala sobre a situação atual no enfrentamento à exploração sexual infantil no Brasil e no mundo.

Pró-Menino - Em termos mais conceituais, quais são os tipo de violência sexual?
Neide Castanha - O abuso sexual intrafamiliar e interpessoal (incesto, pedofilia, estupro, pornografia, etc.) e a exploração sexual comercial e não comercial (exploração sexual na prostituição/prostituição infantil, exploração sexual no turismo, pornografia e pedofilia na internet, tráfico para fins sexuais).

Pró-Menino - Qual tem sido o papel do comitê no combate à violência sexual contra crianças e adolescentes?
Neide Castanha - O comitê tem o papel de coordenar e fortalecer uma rede nacional de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil, monitorando todas as ações de enfrentamento ao abuso e à exploração sexual de crianças e de adolescentes no País e mobilizando a sociedade e as autoridades para que eles se comprometam com a proteção às vítimas e com o combate à impunidade.

Pró-Menino - Qual será o foco do 18 de Maio este ano?
Neide Castanha - Este 18 de Maio está sendo link para mobilização e divulgação do III Congresso Mundial. Tanto é que as atividades nacionais serão no Rio de Janeiro e o mote principal é o lançamento da campanha promocional do III Congresso. O portal com as informações completas está em fase de finalização, mas o site da Secretaria Especial dos Direitos Humanos já traz uma série de dados a respeito do Congresso.

Pró-Menino - Como o Brasil está neste momento no que diz respeito ao número de casos? Há aumento no registro de denúncias?
Neide Castanha - A sociedade tem dado resposta aos apelos de rompimento do silêncio. O número das denúncias tem aumentado vertiginosamente e vigorosamente. Para se ter uma ideia o Disque Denúncia Nacional - DDN 100 recebe hoje cerca de 3.000 ligações por dia, sendo metade para informação de serviço e metade para denúncia. Dessas ligações cerca de 120 denúncias são registradas. Esse é um número impensável dois ou três anos atrás.

Pró-Menino - O Brasil tem uma rede considerável de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, mas no que diz respeito aos serviços oferecidos, como você avalia sua pertinência e eficácia? Poderia mencionar um exemplo bem sucedido?
Neide Castanha - Nós temos uma fragilidade muito grande no que diz respeito ao atendimento especializado para as vítimas de abuso e mais ainda da exploração sexual. Entretanto esse cenário vem mudando nessa mesma linha do governo apoiar ONGs para esse oferecimento por ser um serviço complexo para uma execução direta no serviço público. Uma experiência em curso é na política de assistência social, que através de um dos seus equipamentos denominado de CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) tem a função de atendimento às vítimas de violência sexual (substitui o antigo Programa Sentinela). Ainda é muito cedo para falar de eficácia dessa ação, mas é uma tentativa. Agora temos iniciativas das ONGs que são exitosas e têm recebido apoio do governo, como em São Paulo, a Associação Afeto, que atende as vítimas de abuso e pedofilia, e a ASBRAD (Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude), que atende vítimas de exploração sexual em Guarulhos. A Lua Nova no interior de São Paulo, o Projeto Invertendo a Rota, em Goiânia, e tantos outros espalhados por vários cantos do país. O que tem de desafio é que essas experiências precisam se transformar em políticas universais de direitos de todas as crianças e adolescentes que delas necessitarem pela situação e/ou condição de vítimas de violência sexual. E, nesse aspecto, estamos longe da conquista.

Pró-Menino - O 18 de Maio já é uma data consolidada na agenda nacional, politicamente e socialmente. Na sua opinião, quais os maiores avanços que o Brasil já tiveram no tema? Entre eles, você mencionaria a conscientização da sociedade, a quebra do tabu em torno da questão do abuso e da exploração sexual, o número de denúncias registradas, os projetos de lei sobre a questão?
Neide Castanha - É claro esses são sinais ou indicadores dos avanços resultantes de mais de 10 anos de luta do movimento social. O 18 de Maio é um mecanismo e uma estratégia de mobilização, mas é também uma forma de pressão para alcançar conquistas de forma mais célere como foi o caso do Plano Nacional, das CPIs (Comissões Parlamentares de Inquérito), das mudanças nas Leis, da disponibilização de serviços como o Disque Denúncia Nacional (Disque 100) e outros equipamentos e protocolos para o fortalecimento do sistema de garantia de direitos e a rede de proteção social.

Pró-Menino - Como a senhora avalia os resultados alcançados até agora pela CPI da Pedofilia?
Neide Castanha - A CPI da Pedofilia tem conseguido algumas ações repressivas pontuais com a ajuda da Polícia Federal, que há algum tempo já vinha investigando os casos. O que está havendo é mais visibilidade da situação, mas não podemos dizer que o problema da pedofilia esteja sendo resolvido.

Pró-Menino - Na sua opinião, qual seria a melhor forma de se combater a pedofilia na internet?
Neide Castanha - É uma questão complexa, mas temos que perceber a internet apenas como um meio novo, sofisticado e poderoso para o uso do pedófilo. Mas pedofilia é uma forma de violência sexual contra a criança que ocorre também com utilização de outros meios. O que temos que encontrar são formas que protejam as crianças contra todos os tipos de violência sexual.

Pró-Menino - O maior desafio na questão é, então, criar políticas universais de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual?
Neide Castanha - O maior desafio é implementar o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes com uma política pública universal de enfrentamento à violência sexual contra criança e adolescente que seja eficaz e eficiente para cessar a violência; resgatar direitos e dignidade das vítimas, promover a inclusão social e cidadania por meio de políticas públicas não revitimizadoras. Há também o problema do padrão cultural do machismo e a desigualdade de gênero, que faz a sociedade ser indiferente com as situações de abuso e exploração sexual. Esta é a base da impunidade nos crimes sexuais.

Pró-Menino - Na semana passada, a Interpol lançou um apelo mundial para identificar um homem acusado de molestar três meninos. No âmbito internacional, como andam as articulações contra a exploração sexual infanto-juvenil?
Neide Castanha - Hoje há várias alianças globais na defesa de crianças e de adolescentes e no combate à exploração sexual. A rede internacional End Child Prostitution Child Pornography and Trafficking of Children for Sexual Purposes (ECPAT), que nasceu como uma campanha contra o turismo sexual na Ásia, hoje ganha força em todos os continentes na luta contra a exploração sexual comercial de crianças e adolescentes. A ECPAT é respeitada em todas as instâncias, possui assento no Conselho Econômico e Social (ECOSOC) da Organização das Nações Unidas (ONU) e auxilia na organização dos Congressos Mundiais contra Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Pró-Menino - O caso do austríaco que encarcerou a filha e teve com ela filhos chocou a todos. A violência sexual doméstica é um grande desafio para as políticas públicas. O que pode ser feito em termos de prevenção?
Neide Castanha - A violência sexual doméstica é o maior desafio para o combate à exploração sexual por ocorrer no mundo privado e por ser praticado por pessoas que têm função de proteger as crianças e/ou os adolescentes. Por isso a prevenção tem que ser uma política despida de preconceitos e de tabus. A sexualidade deve ser tratada abertamente – de acordo com o desenvolvimento e a maturidade das crianças – como direito humano, permitindo o conhecimento do corpo e promovendo o direito à informação. Dessa forma, a sexualidade pode ser desenvolvida de forma saudável e protegida.

Site PróMenino - 15/05/2008
LETÍCIA ROCHA e DANIELA ROCHA
da redação do Portal Pró-Menino