Segunda, 08 Fevereiro 2010

Denúncia é esperança para vítimas de violência

Disque 100 para salvar vidas

Especialista acredita que denúncia pode evitar violência contra crianças e adolescentes; Só em janeiro a central nacional registrou 21 casos

O Disque Denúncia Nacional de Abuso e Exploração Sexual Contra Crianças e Adolescentes, o Disque 100, registrou, somente nesse mês de janeiro, 21 casos de violência contra crianças e adolescentes no Tocantins. Comparando 2008 com 2009, houve uma ligeira queda de 242 denúncias para 231. No ranking das denúncias por estado, no período de maio de 2003, ano em que o Disque 100 se tornou de responsabilidade do Governo Federal, até novembro de 2009, em relação à densidade populacional (por 100 mil habitantes), o Tocantins figurava em 14º lugar.

Para o psicólogo e coordenador da Central de Atendimento do Disque-100, Joacy Pinheiro, o número expressivo do último mês por um lado pode ser positivo. “Em parte, pode ser preocupante se avaliarmos que, em tão pouco tempo, apenas um mês, o Tocantins detenha um alto índice de violência contra crianças e adolescentes. Por outro lado, também mostra que a população está atenta ao problema.” O coordenador ressaltou que é importante que as pessoas tenham esse conhecimento, de que o indicador não aponta somente para o aumento de agressões cometidas, mas também para a elevação do número de pessoas que relataram o ato. “A população toma a atitude correta, fazendo o devido encaminhamento, que é até as autoridades”, finalizou.

O serviço do Disque 100 é executado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), em parceria com a Petróleo Brasileiro S.A (Petrobras) e o Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes (Cecria).

Denúncia
De acordo com o ex-conselheiro tutelar e presidente do Conselho de Segurança do Jardim Aureny III, Raimundo Carlos Pereira da Silva, as pessoas têm uma maior disponibilidade para denunciar, o que coibiria a violência contra a criança e o adolescente. No entanto, há uma certa resistência. “Primeiramente a população não se sente coparticipante desse processo de violação de direito, segundo porque ela não acredita no sistema de Justiça ou no sistema de segurança pública”, disse Silva.

Casos
Mas em alguns casos a denúncia pode trazer esperança para as vítimas dessa violência, como foi o caso de quatro crianças, que foram abandonadas pelos pais, no dia 11 de dezembro do ano passado, e foram levadas para Casa Abrigo Raio de Sol. Depois de verem diversas vezes os pais abandonarem e serem negligentes com as crianças, uma menina de seis anos e três meninos, sendo um de 4, outro de 2 anos e um bebê de dois meses, os vizinhos decidiram denunciar. Eles declararam à Polícia Militar (PM) e às assistentes sociais da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, Trabalho e Emprego (SMDSTE) que os pais seriam usuários de crack, estavam desempregados, bebiam excessivamente e se agrediam com frequência. Segundo a casa abrigo, no mesmo dia o avô das crianças entrou em contato com a instituição e levou as crianças para Marabá, no Pará, onde mora.

Em Araguaína, no último dia 24, depois de uma denúncia anônima, o Conselho Tutelar resgatou três crianças que teriam sido abandonadas pela mãe, a dona de casa Poliana da Silva, próximo ao balneário Jacuba. As crianças têm 11 meses, dois e seis anos. A de dois anos sofreu queimaduras de terceiro grau com álcool em 80% do corpo. Segundo o conselheiro tutelar Marcelo Gama, que fez o resgate das crianças, os ferimentos foram por negligência dos pais. As crianças foram encaminhadas para a Casa de Acolhimento Ana Carolina Tenório, onde estão atualmente.

Casos são encaminhados em no máximo 24 horas
Quando as denúncias de violência contra crianças e adolescentes são feitas no Disque 100, é realizada uma seleção das denúncias. “Temos as denúncias gerais, que são as mais comuns, como por exemplo, os casos de negligência. Temos as urgentes, que se caracterizam como cárcere privado, risco de morrer ou violência física, que deixa marcas”, explicou Joacy Pinheiro, psicólogo e coordenador da Central de Atendimento do Disque-100. As denúncias são encaminhadas, de acordo com Pinheiro, num prazo máximo de 24 horas, para o Conselho Tutelar do Estado, com notificação ao Ministério Público Estadual (MPE).

A partir do momento em que o Conselho Tutelar recebe determinada denúncia, segundo o ex-conselheiro tutelar e presidente do Conselho de Segurança do Jardim Aureny III, Raimundo Carlos Pereira da Silva, é imediatamente feita uma verificação in loco a fim de constatar o fato. “Dependendo do nível da denúncia, solicitamos o acompanhamento de um assistente social, da Polícia Civil ou Militar. Identificada a situação de violência contra a criança ou adolescente, o colegiado se reúne para que a denúncia seja colocada em pauta. A partir de então, são tomadas as medidas emergenciais como, por exemplo, a retirada da vítima do ambiente.”

Silva avalia que aquele que deveria ser retirado do local seria o agressor, entretanto, ele afirma que o Conselho Tutelar não possui tal autonomia. “Para tanto, seria necessário solicitar ao Judiciário, conforme artigo 130 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), então, é mais fácil retirar a vítima do ambiente ou da moradia.” (T.S.)

O que diz a lei

Art. 130
Verificada a hipótese de maus-tratos, opressão ou abuso sexual impostos pelos pais ou responsável, a autoridade judiciária poderá determinar, como medida cautelar, o afastamento do agressor da moradia comum.

Fonte: Estatuto da Criança e do Adolescente

Maioria das agressões acontece em casa, diz professor


O professor do Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Direitos Humanos da Universidade Federal do Tocantins (UFT), Denilson de Castro, explicou que é normal a violência acontecer, na maioria das vezes, dentro do seio da própria família e que as famílias também se constituem, de variadas maneiras, como protagonistas de múltiplas formas de violência. “Os dados evidenciam a negligência e o desrespeito, em variados núcleos familiares, aos direitos humanos fundamentais de um incalculável número de crianças”, disse.

Segundo o professor, maus tratos, violência, seja ela física, psicológica ou sexual, são agressões que rompem laços de confiança, entre o agredido e o agressor. “O agressor, que sempre esteve bem próximo ao agredido, usa o poder ou dever de proteção para causar diversas sequelas, essas que são irreparáveis a curto, médio e longo prazo.”

A violência doméstica mais comum é a praticada contra criança e adolescente, e, conforme Castro, algumas delas são comparadas como agressões da época das senzalas, em que escravos apanhavam de seus ‘donos’ por algo que os contrariavam.

“É lamentável que ainda são poucas as pessoas que denunciam tal crime. Em geral, elas preferem se omitir, com medo de represália e achando que o problema é de família e que de fato existe uma criança que está passando por sérias ameaças e com risco de morrer.”

MPE atua na proteção e na responsabilização

A responsabilização criminal do agressor está paralelamente ligada, segundo a promotora de justiça do Ministério Público Beatriz Mello, que atua na Área da Infância e da Juventude. Beatriz explica que dentro do Ministério Público Estadual (MPE), existem duas áreas de atuação, na proteção da vítima e também na apuração do crime, que é a responsabilização criminal do agressor.

Segundo ela, é a promotoria (sua função) que irá verificar se o pai, mãe, ou responsável têm condição de continuar cuidando da criança. “Muitas vezes é necessário a aplicação da medida específica de proteção, conforme artigo 101, inciso VII do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que é o abrigamento dessa criança, onde ela será protegida”, explica.

Em outra situação, por exemplo, é feito um pedido de retirada do agressor da família para que ele não tenha contato com a criança. “Nos casos mais graves o promotor de infância pode entrar com uma ação de destituição do poder familiar, para acabar de vez com o vínculo de paternidade ou maternidade existentes na relação entre agressor e criança”, destacou Beatriz, referindo-se ao artigo 129 do ECA, inciso X.

A promotora de Justiça explicou que maus tratos e violência física contra crianças e adolescentes são crimes que mais têm assolado não somente o Tocantins mas também o País. “Esses crimes estão associados à questão da desestruturação familiar, do desemprego, abuso do álcool e uso de drogas.” (T.S.)

Pena para agressor vai de dois meses a 15 anos
Palmas - Titular da Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente (DPCA), Edsonina Alves contou que entre os crimes mais comuns no Estado estão a negligência, violência psicológica, violência física, abuso sexual, violência com lesão corporal e exploração sxual. Segundo ela, as penalidades para o agressor podem variar de acordo com a potencialidade do crime em questão. “Maus tratos que exponham em risco a vida da vítima, conforme Artigo 136 do Código Penal, pode gerar de 2 meses a 1 ano de reclusão.”

A negligência, que é o abandono da criança que está sob a responsabilidade do infrator, varia de acordo com a situação. Já as lesões corporais leves, ou seja, de pequeno potencial ofensivo, podem levar o agressor a cumprir de 3 meses a 1 ano de regime fechado. “Estupro seguido de violência de vulnerável (menor de 14 anos), conforme o artigo 213 do Código Penal, que estabelece que o acusado pode pegar de 8 a 15 anos de prisão, sendo que a pena pode aumentar de acordo com o estado da vítima”, explicou.

Crime
Um crime que chocou o País contra criança foi da menina Isabela Nardoni, de cinco anos de idade, que foi jogada do apartamento de seu pai, localizado no sexto andar do Edifício London, em São Paulo, na noite do dia 29 de março de 2008. Em função das evidências deixadas no local do crime, Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, respectivamente pai e madrasta da criança, atualmente são réus de ação penal e respondem por homicídio doloso triplamente qualificado. (T.S.)

“Me sentia indefesa”

“Tudo começou com a violência doméstica. Em casa, desde muito pequena, sempre presenciei meu pai, que era alcoólatra, espancar minha mãe, ameaçando-a de morte. Ele nos obrigava a trabalhar na roça, pegando para ele o dinheiro que ganhávamos. Tínhamos medo de denunciá-lo, afinal, fora de casa ele tinha fama de bom moço. Quando completei 12 anos, minha única esperança era que a vizinha, que sabia o que se passava dentro de minha casa, pudesse nos ajudar. Um dia, ela me abordou e me levou para sua casa, e lá começou a me acariciar e abusou sexualmente de mim. Senti medo, senti repulsa. Ela me ameaçou, disse que se eu contasse, falaria para meu pai que eu estava tentando seduzir o marido dela. Durante dois anos, fui ameaçada e molestada por esta vizinha, que fazia uso de objetos para introduzi-los em mim. Sentia uma vontade enorme de gritar, de fugir, de contar para alguém, mas me sentia indefesa. Foi então que surgiu a oportunidade de trabalhar como babá em uma casa de família, passei a morar lá. Nessa época, já estava com 14 anos. Por algum tempo me senti feliz, segura e protegida. Mas certa noite, acordei com o pai das crianças em cima da minha cama, passando a mão em mim, tocando minhas partes íntimas. Ele tentou me pegar a força, mas consegui fugir e nunca mais voltei para aquela casa. Hoje, estou terminando minha graduação em serviço social. Quero me especializar em psicologia infantil e pretendo fazer parte do Conselho Tutelar, ajudar crianças, e de certa forma, tentar entender o que aconteceu comigo.”
Hélida, 40 anos (nome fictício)

Fonte: Jornal do Tocantins