Sexta, 05 Março 2010

Direito á alimentação

Sem nutrientes necessários ao corpo, não há alegria nem aprendizado. Com a ajuda de uma farinha especial, crianças vencem a desnutrição

Erika Klingl
Da Equipe do Correio

A receita não exige ingredientes sofisticados e caros. Farelos de arroz, leite, fubá, farinha de trigo, amendoim, gergelim, semente de girassol, semente de abóbora, semente de melancia, folha de mandioca e folha de batata-doce. É assim que se fabrica a multimistura, conhecida como farinha múltipla, que tira crianças da desnutrição e salva vidas na periferia da capital do país. A multimistura não tem uma preparação única. Os ingredientes utilizados levam em conta os recursos naturais e a cultura de cada comunidade na hora de enriquecer sua alimentação.

E, acredite, transformou a vida de Eduarda, 5 anos. Moradora da Estrutural, a menina tinha dificuldade de ganhar peso. Com dois anos, era magrinha e com desenvolvimento físico abaixo da média. .Ela tem intolerância ao leite desde pequena e não comia papinha com verdura e legume de jeito nenhum., afirma a mãe, Lidiana Pereira de Oliveira, 28. Para piorar, na casa dela é comum chegar ao meio do mês já com a despensa e a geladeira vazias. Lidiana é dona-de-casa e o marido, Alexandre Oliveira, 31, está desempregado. Vive de bicos como pintor. .Passamos aperto. Quase todo mês batemos na casa da vizinhança., reconhece Lidiana. Dinheiro certo, no barraco, só os R$ 100 do Renda Minha do Governo do Distrito Federal. .A vida é muito difícil, nem sei o que seria de nós sem a ajuda de todos..

Eduarda não dá sinais das dificuldades que a família vive. O sorriso farto e rosto corado entregam a saúde intacta da menina. .Gosto de comer a farinha no meio do arroz e do feijão para ficar muito forte. Ano que vem, vou para a escola e minha mãe disse que comer faz a gente ficar inteligente., conta a menina mostrando o bíceps, como se fosse o Popeye. .E eu quero crescer e ser bailarina., sonha. A farinha da qual a menina fala é a multimistura distribuída mensalmente pelo voluntário da Pastoral da Criança na Estrutural Marcelo Almeida, 37 anos. Fundadores da Pastoral na cidade, há oito anos, ele e a mulher Adriana Lima gastam R$ 50 por mês para fazer o suficiente para 60 crianças. .A mistura não substitui a comida, mas enriquece o alimento que às vezes é pobre em nutrientes., explica Marcelo, pai de cinco filhos.

Aproveitamento integral

De acordo com Marcelo, a Pastoral da Criança incentiva há muitos anos a alimentação enriquecida, que funciona, principalmente, prevenindo anemia, desnutrição, obesidade e outros distúrbios nutricionais. Além da farinha, a orientação é aproveitar o alimento de forma integral . o que muitas vezes não ocorre por desconhecimento ou falta de hábito. Assim, pode-se comer a banana e fazer farofa com a casca. .Não é para os ricos comerem a banana e os pobres a casca. Ensinamos que tanto pobres como ricos podem utilizar os dois produtos, a fruta e a casca., explica. .O segredo é não dar apenas a forma de farelos e sim proporcionar uma alimentação enriquecida., completa.

A história da sobrevivência das crianças com o auxílio da Pastoral da Criança serve para ilustrar a terceira matéria da série sobre as garantias da legislação brasileira a meninos e meninas contada desde a semana passada pelo Correio. Eduarda serve de exemplo para um direito fundamental: a alimentação. Afinal, sem ele não há brincadeira, não há escola e, principalmente, não há vida.

O alimento à base de produtos naturais torrados e triturados é essencial no tratamento contra a desnutrição. Mas não seria nada se não contasse com um ingrediente muito importante: a pitada de amor que os voluntários da Pastoral da Criança levam aos lares mais pobres. Na Estrutural, 15 voluntários atendem cerca de 120 famílias. Eles trabalham sem remuneração para romper o ciclo de pobreza e exclusão de crianças e de seus familiares por meio de ações educacionais em prol da saúde e da cidadania.

Líderes na comunidade

Os voluntários são líderes identificados pela Pastoral da Criança na própria comunidade. Depois de treinados, eles realizam visitas domiciliares e fazem reuniões periódicas com as famílias, orientado-as sobre os cuidados com as crianças. E, todo mês, pesam e medem meninos e meninas para acompanhar o crescimento deles. Eduarda adora o momento da pesagem porque, na Estrutural, ela é feita em conjunto. É uma festa com a meninada correndo para todos os lados, enlouquecendo as mães. No meio da bagunça, os voluntários aproveitam para conscientizar os pais sobre a importância da amamentação e da higiene na preparação da comida. A cada conversa, fica mais clara a relevância da atenção da mãe, da família com a criança e com o seu desenvolvimento.

Foi por meio dos voluntários que Cristiane Alves Gomes conheceu a multimistura e garantiu a nutrição de Izac, de 1 ano e 7 meses. .Ele era magrelinho demais. Hoje é um meninão., comenta a mãe. Na caderneta da vacinação do menino, o gráfico deixa claro o alerta. Oito meses atrás, quando a criança mal tinha largado a amamentação, a linha de crescimento ocupava o quadrante vermelho . sinal de que o crescimento estava comprometido. Hoje, o verde do gráfico orgulha a diarista. .Meu menino é forte que só vendo., comemora.

O irmão Jonathan, 7 anos, pegou carona na farinha. Come uma colher de sopa da multimistura na carne moída ou no mingau. .O pozinho não tem gosto e minha mãe disse que a gente vai ficar forte que nem super-herói., afirma o menino. A Pastoral da Criança nasceu em 1982, por iniciativa da médica pediatra e sanitarista Zilda Arns e teve o modelo adotado em 14 países. Por conta desse trabalho, Zilda Arns foi indicada para ganhar o Prêmio Nobel da Paz por três vezes consecutivas.

O QUE DIZ A LEI

Embora não haja um capítulo específico na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) sobre um direito tão claramente ligado à vida, pois não há sobrevivência sem comida, as duas principais leis de proteção da infância e juventude colocam a alimentação entre os direitos a serem protegidos. Cabe ao Estado fornecer a comida caso pais ou responsáveis não tenham condições de fazê-lo. E a preocupação com a efetivação desse direito é clara quando o ECA, no artigo 7º, dispõe que incumbe ao poder público propiciar alimentação à gestante e à nutriz que dele necessitem, pois é evidente que para um desenvolvimento sadio é necessária uma alimentação adequada desde a gestação.