Manifesto contra o toque de recolher

O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - Glória de Ivone - CEDECA/TO é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, com área de abrangência em todo o território Estadual, sendo sua sede nesta Capital. Tem como missão defender os direitos humanos de crianças e adolescentes, especialmente quando violados pela ação ou omissão do Poder Público, da família e da sociedade, assegurando-lhes a promoção, a proteção e a defesa. Trata-se de um Órgão previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, em seu artigo 87, inciso V.

Neste diapasão, manifesta parecer contrário ao procedimento denominado Toque de Recolher - proibição de circulação de crianças e adolescentes nas ruas no período noturno, pelos motivos a seguir:

1) As leis ordinárias não podem contrariar princípios constitucionais e legais, como o direito à liberdade, previsto nos artigos 5º e 227 da Constituição Federal Brasileira, e nos artigos 4º e 16 do ECA - direito à liberdade, incluindo o direito de ir, vir e estar em espaços comunitários.

2) O procedimento contraria a Doutrina da Proteção Integral, da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, em vigor no Brasil por meio da Lei 8.069 de 1990 (ECA) e a própria Constituição Federal Brasileira, tendo em vista a violação do direito à liberdade. A apreensão de crianças e adolescentes está em desconformidade com os requisitos legais por submeter crianças e adolescentes a constrangimento, vexame e humilhação (arts. 5º e 227 da CF e arts. 4º, 15, 16, 106, 230 e 232 do ECA). Volta-se a época em que crianças e adolescentes eram tratados como “objetos de intervenção do estado” e não como “sujeitos de direitos”. A medida significa um retrocesso, tendo em vista que nos remete à Doutrina da Situação Irregular do revogado Código de Menores e a procedimentos abusivos como a “Carrocinha de Menores” e outras atuações meramente repressivas executadas por Comissariados e Juizados de Menores.

3) Em muitos casos, a atuação dos órgãos envolvidos no Toque de Recolher denota caráter de limpeza social, perseguição e criminalização de crianças e adolescentes, sob o viés da suposta proteção.

4) Não se verifica o mesmo empenho das autoridades envolvidas na decretação da medida aludida em suscitar a responsabilidade da Família, do Estado e da Sociedade em garantir os direitos da criança e do adolescente, conforme dispõe o ECA. Inclusive, a própria legislação brasileira já prevê a responsabilização de pais que não cumprem seus deveres, assim como dos agentes públicos e da própria sociedade em geral. No mesmo sentido, por que as autoridades envolvidas no Toque de Recolher não buscam punir os comerciantes que fornecem bebidas alcoólicas para crianças e adolescentes ou que franqueiam a entrada de adolescentes em casas noturnas ou de jogos, ou qualquer adulto que explore crianças e adolescentes?

5) Nenhuma criança ou adolescente deve ficar em situação de abandono nas ruas, em horário nenhum, não só durante as noites. Para casos como esses, assim como para outras situações de risco, o ECA prevê medidas de proteção (arts. 98 e 101) para crianças e adolescentes, e medidas pertinentes aos pais ou responsáveis (art. 129) aplicadas pelos Conselhos Tutelares que são órgãos de proteção e defesa de direitos de crianças e adolescentes (arts. 131 a 136 do ECA), e não de repressão ou punição.

6) A polícia não deve ser empregada em ações que visem o recolhimento de crianças e adolescentes. Nesse sentido, o Estatuto e a normativa construída nos últimos 19 anos prevêem a necessidade de programas de acolhimento com educadores sociais, que façam a abordagem de crianças e adolescentes que se encontrem em situação de rua e/ou de risco. Muitas vezes, os abusos sofridos nas próprias casas geram a ida de crianças e adolescentes para as ruas.

Nesses casos, a solução também não é o toque de recolher. O adequado é a atuação dos órgãos e programas de proteção, acolhimento e atendimento às crianças, aos adolescentes e às famílias. Devemos destacar que, diante de situações de risco em que se encontrem crianças e adolescentes, qualquer pessoa da sociedade pode e deve acionar os programas de proteção e/ou os Conselhos Tutelares, assim como todos da sociedade têm o dever de agir, conforme suas possibilidades, visando prevenir ou erradicar as denominadas situações de risco.

7) O procedimento do Toque de Recolher contraria o direito à convivência familiar e comunitária, restringindo direitos também de adolescentes que, por exemplo, estudam à noite, frequentam clubes, cursos, casas de amigos e festas comunitárias.

8) Conforme os motivos acima elencados, o Toque de Recolher contraria o ECA e a Constituição Federal. É uma medida paliativa e ilusória, que objetiva esconder os problemas no lugar de resolvê-los. As medidas e programas de acolhimento, atendimento e proteção integral estão previstas no ECA, sendo necessário que o Poder Executivo implemente os programas; que o Judiciário obrigue a implantação e monitore a execução e que o Legislativo garanta orçamentos e fiscalize a gestão, em inteiro cumprimento às competências e atribuições inerentes aos citados Poderes.

9) As Câmaras Municipais não têm competência constitucional para aprovar leis específicas sobre o toque de recolher. As competências cidadãs de cada município brasileiro estão previstas na Constituição Federal de 1988, Constituição esta que distribui o que são atribuições da União, de cada Estado e de cada município. O município não pode legislar sobre proteção a criança e ao adolescente (artigo 24, XV da Constituição). O Município deve organizar os serviços essenciais à sua população (artigo 30 da Constituição).

Nestes termos, o CEDECA recomenda:

1) Que os municípios tenham programas com educadores sociais que possam fazer a abordagem de crianças e adolescentes que se encontrem em situações de risco, em qualquer horário do dia ou da noite, visando os encaminhamentos e atendimentos especializados previstos na Lei.

2) Que os municípios fortaleçam a rede de proteção social e o Sistema de Garantia de Direitos, inclusive os Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente e Conselhos Tutelares.

3) Que os municípios implantem o programa em regime de orientação e apoio sócio-familiar, previsto nos artigos 88, III, e 90, I, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

4) Que as Câmaras Municipais aprovem em caráter de urgência o Plano Municipal de Atendimento à Criança e ao Adolescente 2008-2011, inclusive com destinação orçamentária para sua execução.

5) Que em vez de toque de recolher deve ser estimulado, praticado e fortalecido o sistema de proteção integral à cidadania, com prioridade absoluta a crianças e adolescentes.

15 de setembro de 2009
Palmas, Tocantins.